A pobreza é um estado de privação. Esta privação pode ser de algo tangível ou intangível, isoladamente ou em acumulação. Como privação mais tangível temos os recursos materiais ligados à alimentação e a um teto. Já no referente aos intangíveis está a capacidade de livre arbítrio e autonomia, por exemplo nas pessoas dependentes de adições ou em situação de problemáticas de saúde mental.
As pessoas em situação de sem-abrigo (PSSA) estão sujeitas de muitas dessas privações, geralmente em acumulação, e como relata o Dr.º António Bento, médico psiquiatra e um dos mais conceituados conhecedores desta realidade, cerca de 70% das PSSA padecem de alguma forma de doença mental.
Dai a complexidade de cuidarmos e ajudarmos a reencontrarem Sentido de Vida, com a correspondente autonomia e dignidade, nas Pessoas que acabam por ser os “mais pobres dos mais pobres”.
Sendo um fenómeno dinâmico, assistimos presentemente a um aumento considerável do consumo de substâncias psicoativas, que provocam rápida e acentuada dependência, com o ressurgimento de novos “Casais Ventosos”. As pessoas que estão nesta situação, além da sua dependência, passam fome, por insuficiência de meios financeiros para comer e adquirir a “próxima dose” e segundo os relatos dos voluntários da Comunidade Vida e Paz, são verdadeiros “cadáveres ambulantes”.
O número de pessoas que sobrevivem nas ruas da cidade de Lisboa aumentou durante este ano cerca de 25%, num movimento continuo que ainda não terminou.
Neste Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza não pode a Comunidade Vida e Paz deixar de expressar a sua imensa gratidão aos seus benfeitores, que lhe tem permitido ir ao encontro dos “mais pobres dos mais pobres”, levando-lhes uma palavra de carinho, alimentação e uma proposta de reencontro com o seu sentido de vida original.
No entanto, não pode deixar de lamentar a “pobreza” das entidades públicas na sua não preocupação com estas pessoas que passam fome.
Vejamos: Face ao aumento de custos com a elaboração das 550 ceias que diariamente as equipas voluntárias de rua da Comunidade distribuem, foi pedido apoio à Câmara Municipal de Lisboa, que declinou essa responsabilidade respondendo que “não tem previsto nos seus eixos de intervenção o apoio a este tipo de respostas, em concreto no tocante à distribuição alimentar”!!!
Outra situação decorrente das dinâmicas do fenómeno das PSSA é a constatação do grande aumento de pessoas em idade próxima da reforma, acima dos 50 anos, que após tratamento das suas adições já não têm condições de saúde física e psicológica para uma vida autónoma, pelo que têm que continuar institucionalizados, devendo fazê-lo noutras unidades, disponibilizando assim lugares de reabilitação para novos utentes.
Para isso é fundamental sermos proactivos em relação a esta nova realidade e temos alertado o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social para a necessidade de criação de uma resposta social adequada a estas pessoas. Até ao momento continuamos com o mesmo modelo, retirada da rua, tratamento, preparação para autonomia plena, ou limitada, sem resposta efetiva para a Reinserção quer dos que estão em idade ativa quer dos que estão para além dela, com autonomia ou dependentes. Um modelo já ultrapassado e sem qualquer indicação de preocupação com esta nova realidade.
A pobreza das instituições também é ilustrada na ação da Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade (CNIS) que recentemente conseguiu uma importante renegociação com o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, num reforço dos valores protocolados, face ao enorme aumento dos custos. Curiosamente o apoio aos ERPI (Lares) foi aumentado em 6%, mas no caso dos protocolos que contemplam as PSSA o valor foi de 3%, como se as PSSA e os profissionais que os ajudam a recuperar a sua dignidade fossem “Filhos de um deus menor”.
Mais grave é a situação com os acordos com o Ministério da Saúde, onde os valores acordados para tratamento de pessoas com adição nos diversos Centros Terapêuticos não eram atualizados desde o ano de 2008, tendo, finalmente, uma pequena atualização em 2023, que não cobre minimamente o aumento de custos dos últimos anos.
Esta situação implicou o fecho de cerca de 200 camas pela incapacidade de financiamento das diferentes instituições, sendo fundamental uma atualização anual mais robusta.
Concluindo, apelamos à continuação do apoio dos nossos benfeitores, excecionalmente importante, pela fase critica que atravessamos. Mas apelamos, de uma forma muito expressiva, às entidades públicas para nos ajudarem a minorar as situações de FOME existentes na cidade de Lisboa, de combate à pobreza e exclusão social e, especialmente, a serem criadas condições para uma efetiva mudança do sentido de vida.
Horácio Félix, Presidente da Comunidade Vida e Paz